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CELEBRAR A VIDA, LUTAR POR UMA MORTE DIGNA - A partir de "Escrevendo na cova de alguém", de Lena Giuliano

  • Foto do escritor: capivara crítica
    capivara crítica
  • 1 de nov.
  • 3 min de leitura
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Um convite:

“Se você quer morrer hoje, escreva seu nome nesse papel e coloque na urna.”

Você escreveria? Escrevendo ou não, entramos num espaço em que há um bar de um lado e no outro um grande caixão, flores espalhadas, uma mesa, e uma máquina de escrever. Apesar da morbidez de uma sexta-feira - 31 de outubro - há uma clima geral de descontração. Ouvimos diferentes músicas, que Lena recolheu em uma série de performances individuais, em que ela escrevia o obituário de uma pessoa que se deitava em uma caixão - “Escrevendo na cova de alguém” é a coletivização dessa proposta anterior, na medida em que repete os mesmos procedimentos só que agora com uma plateia. Essas músicas, apesar de animadas, foram as músicas que as pessoas escolheram para ouvir enquanto estavam deitadas no caixão. Caso alguém já tivesse morrido pelas mãos de Lena poderia ouvir, de repente, a música que havia escolhido, lembrando do momento em que havia deitado no caixão que agora descansa diante de seus olhos.

Enquanto isso, risos se espalham. Risos um pouco tensos, é verdade, afinal todos ali poderiam ser sorteados para morrer. Risos que se interrompem quando a artista se senta na máquina de escrever, sem explicar nada, e passa um bom tempo teclando freneticamente. Enquanto isso ouvimos Jorge Ben dizer:


“Hermes Trismegisto escreveu com uma ponta de diamante

Em uma lâmina de esmeralda”


O embalo da música contradiz a tensão e expectativa instaurada na plateia: o que vai vir? Será que já vamos morrer? Ao mesmo tempo, a letra cria outro significado para a ação que estamos vendo diante de nossos olhos, afinal toda máquina de escrever tem um pouco de tábua de esmeralda, na sua capacidade mágica de perenizar o efêmero. Depois do ponto final, Lena entrega o texto para uma pessoa e explica as regras do jogo. Ela sorteará três nomes de pessoas que irão responder algumas perguntas - respostas verdadeiras, mentirosas ou ficcionais como explicitado pela escritora - depois deitar no caixão enquanto ela escreve um obituário, que será lido publicamente. O texto que ela entregou deve ser lido ao final das três mortes.

“Brincar de morrer”. Esse foi o termo que uma das pessoas usou quando perguntada como gostaria que fosse seu velório. E aí está uma das maiores potências do teatro: a possibilidade de a todo tempo brincar com a morte. Torcendo os sentidos da palavra, Lena cria A representação é uma tecnologia capaz de rir do nosso destino inescapável. Por meio dela podemos ser atravessados por espadas ou envenenados, e depois nos levantarmos para agradecer ao público no final. Ressuscitamos sempre depois do terceiro ato. Ao colocar o caixão no centro da sala, Lena radicaliza essa percepção, repetindo três vezes o estranhamento de ver alguém se levantando dele. “Já posso ressuscitar?”, uma das espectadoras pergunta.

Ao instaurar velórios de pessoas que ainda estão vivas, Lena cria um espaço liminar entre a representação e a possibilidade efetiva de alguém não se levantar mais. Essa tensão entre ficção e realidade cria uma dinâmica de profanação lúdica de um dos maiores tabus contemporâneos: a morte. Dessa maneira é possível ver diante de nós amigos tirando selfies com a defunta. Outros colocando e acendendo cigarros na boca do morto. Uma festa de garotas junto com divas pop no cemitério. E por fim uma grande conga em volta do caixão ao som de Sidney Magal. O público busca realizar os desejos expressados pelos participantes durante as entrevistas. Concretizar, mesmo por um instante, uma realidade impossível.

E aí mora o caráter político da peça. Sem precisar fazer um discurso sobre como a morte, Lena cria um dispositivo que confronta diretamente os modos de morrer no Brasil. Se por um lado vemos a morte protocolar e higienizada nos hospitais, por outro vemos a morte trágica, destituída de qualquer sensibilidade, o horror televisionado. Ao criar festas públicas em que imaginamos outros modos de lidar com a morte, Lena utiliza da elipse para falar sobre aquilo que não está lá. Quando uma das espectadoras - uma menina negra de 17 anos - disse que gostaria de morrer com um tiro na testa, porque seria rápido, automaticamente somos lançados para as imagens que ocuparam nossa semana. O riso e a festa passam a assumir um gosto amargo de sonho impossível, porque sabemos que a realidade é outra. Ao criar velórios em que se pretende “compensar sua morte trágica e repentina” - como ela escreveu em um dos obituários da noite - Lena retoma a radicalidade da ficção, mesmo usando-se de um pacto intensamente performativo. A síntese dessa política da imaginação - contra a necropolítica do documento - está sintetizada na pergunta: “Se você pudesse escolher como morrer, como você morreria?”

 
 
 

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