OLHEI NOS OLHOS DO REAL E VI QUE ELE É IMAGINÁRIO - a partir de “Tudo pra mim é viagem de volta” de Podeserdesligado
- capivara crítica
- 21 de nov.
- 3 min de leitura

Esperamos. Uma voz ecoa. Ela - a voz - descreve coisas. Coisas que vemos. Uma porta anti-fogo. Uma escada. Uma placa dizendo “Elevador em breve”. Mas também coisas que não vemos. Um cachecol preto, um caso preto, uma tatuagem vermelha. Onde será que estão essas coisas? E como ela está vendo essas coisas? Os elementos que a voz descreve gradativamente vão se aproximando do saguão onde estamos, então pensamos que a artista aparecerá depois da porta. Mas quem surge é um celular, carregado por outra pessoa, com uma câmera em videochamada. As descrições continuam até subirmos as escadas e chegarmos no espaço em que a artista está deitada, de branco, imóvel, com um microfone pendendo do teto e um celular próximo ao rosto. Um lazer azul passa por cima de seu corpo, formando uma linha divisória. Quem está sob e quem está sobre as linhas azuis ondulantes formadas pela fumaça e pela luz.
Esse prólogo funciona como uma espécie de aquecimento para a imaginação da plateia. Músculo que será intensamente demandado na hora que se seguirá. Logo nos primeiros minutos, por meio da descrição de coisas, percebemos a linha tênue que separa aquilo que vemos e aquilo que imaginamos. Pensamos que quem está enunciando aquelas palavras de fato está subindo as escadas. Mas a realidade é outra. Contudo até o instante em que o celular cruzou a porta, para nós o real era uma pessoa de fato que subia as escadas e via com seus olhos os elementos que descrevia. Ou seja, com esse dispositivo, Podeserdesligado já suspende qualquer noção de que aquilo que vemos é aquilo que de fato é a realidade. O invisível - no caso ela mesma - pode ser tão real quanto a placa do elevador, o cachecol, a porta anti-fogo. Esse jogo com a visibilidade ganha contornos sociais quando finalmente vemos a artista, uma travesti negra, que questiona: “Ela me olha, mas não me vê”.
As ações se desenrolam nesse sentido, tornar visível o invisível, real o imaginário. Assim ela estica uma fita de gravador de som pelo espaço. Prende em determinados pontos, criando um mapa, um dentro e um fora. Distribui o público. Algumas pessoas dentro, outras fora. De repente cria-se uma separação. Uma separação arbitrária. Uma fronteira. Então nos damos conta de que se as linhas cartográficas são tão imaginadas como essa que acaba de ser traçada com uma fita de gravador, porque outras coisas imaginárias não podem ser tão reais quanto as linhas que delimitam um país?
A partir desse momento começamos a ver em telas espalhadas pelo espaço imagens criadas por inteligência artificial do fundo do mar. Vemos peixes luminosos, baleias e arraias. Vemos então mulheres negras que começam a se transformar em sereias. Enquanto a artista discoteca sua própria voz - a sinalização em LIBRAS também é remixada, radicalizando a exploração com a torção da linguagem - atrás dela vemos os textos utilizados para criar as imagens que vemos. Percebemos a distância entre a imaginação poética presente nas palavras e a precariedade das imagens. A IA é posta em cheque enquanto tecnologia. As ficções visionárias que Podeserdesligado cria vão muito além. Permeada por aparatos tecnológicos, ela extrapola seus sentidos de uso, manipulando a luz com a voz, vendo coisas invisíveis com a câmera, escutando sons inaudíveis do próprio corpo com sensores.
A tecnologia então é usada como extensão corporal utilizada para ampliarmos nossa percepção. Alterando as formas como percebemos o mundo, conseguimos alterar nossos horizontes de imaginação. Assim, por meio de dispositivos que modificam concretamente nossa visão e audição, Podeserdesligado faz com que seja possível imaginar uma sociedade subaquática de mulheres negras que sobreviveram à travessia forçada do Atlântico. De maneira pedagógica, sem apelar para o didatismo discursivo, a artista consegue construir no público uma outra forma de perceber e pensar a realidade, afinal existem coisas que não estão ao alcance dos nossos olhos, como ela afirma.
A cena se constitui assim como um mecanismo de aproximação sensível, em que por meio de estímulos concretos, somos levados à imaginar outras possibilidades de existência. Se no início apenas ela estava abaixo da linha do mar - construída com lazer e fumaça - ao final quando ela sai pela porta, a linha sobe, submergindo todo o público num azul profundo. Molhados, saímos dali sabendo que, ao olhar nos olhos do real, o que ele nos devolve é sempre o brilho inquietante do imaginário.
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