top of page
Buscar

O OLHAR COMO CRÍTICA - a partir de “Porgy and Bess”, de Grace Passô

  • Foto do escritor: capivara crítica
    capivara crítica
  • 28 de set.
  • 6 min de leitura
ree

Como lidar cenicamente com o passado? As Artes da Cena em suas diversas linguagens de alguma forma a todo momento tentam responder essa pergunta, questionando a pertinência de realizar no presente algo produzido em um contexto muito distante do nosso. Mas, dentre o teatro, o circo, a dança… é a ópera que diariamente se confronta com essa problemática. Tanto por seus repertórios clássicos, cujos libretos e partituras não podem ser alterados - segundo regras internas da comunidade operística que ninguém sabe quem impôs e ai daquele que as transgredi-las - quanto pelos espaços em que normalmente se apresentam. Imitando teatros de cortes europeias, o Theatro Municipal e o Theatro São Pedro - as duas casas de ópera de São Paulo - se estruturam a partir de uma lógica hierarquizada e excludente, na qual ao público pobre são destinados os lugares com baixa visibilidade do palco e aos ricos os camarotes, para os quais toda encenação geralmente é desenhada. Essa desigualdade também se espelha na organização interna do espetáculo, no qual o maestro tem destaque de aplausos e de salário. E com toda essa herança, de libretos politicamente conservadores e espaços classistas, que uma encenadora contemporânea de ópera precisa lidar, seja para ratificá-la ou questioná-la.

A Sustenidos, organização social que gere o Municipal (leia-se empresa que administra um equipamento público), tem buscado na medida do possível tensionar o universo elitista da ópera, seja estimulando compositores a criarem novas partituras e libretos, seja convidando diretoras/es de teatro a encenarem repertórios clássicos. Vale salientar que essas/es encenadoras/es convidadas/os pelo Municipal se inscrevem em uma maneira específica do fazer teatral: o teatro de grupo. Com origem rastreável nos coletivos politizados dos anos 60, os grupos de teatro se caracterizam por uma organização horizontal, cuja produção não se volta ao mercado, mas sim aos debates contemporâneos da sociedade. Esse choque entre uma estrutura profundamente hierarquizada como a ópera e uma forma amplamente democrática como o teatro de grupo, trouxe distintos resultados e tensões ao Theatro Municipal. A politização recente das óperas, que trouxeram aos palcos sujeitos até então excluídos da cena, despertou a ira da prefeitura facista de Ricardo Nunes que, diante de qualquer aceno progressista, ameaça ações culturais taxando-as de bandernas comunistas - como se fosse possível uma empresa como a Sustenidos propor uma ação verdadeiramente progressista e crítica.

Enfim, Porgy and Bess com encenação de Grace Passô se insere nesse contexto, como um possível canto do cisne de um ciclo de tensionamento da Ópera pelo Teatro. Atualmente desenvolvendo uma carreira em projetos individuais e independentes, Grace tem suas raízes no Grupo Espanca, de Belo Horizonte. Para além dos espetáculos, o grupo criou um espaço próprio que segue até hoje com ações voltadas para a criação e reflexão da arte negra. Essa origem profundamente distinta do ambiente operístico marca a perspectiva da montagem, que em diversos momentos se utiliza de procedimentos sutis para que o público estranhe o espaço que está acostumado. Feita essa contextualização, que nos permite ver as condições materiais e as bases ideológicas que sustentam a maquinaria da Ópera, podemos partir para análise do espetáculo em si, identificando nele momentos de aproximação e de crítica em relação à estrutura classista do Theatro Municipal.

Enquanto a orquestra embala uma música instrumental baseada no jazz, um grupo de bailarinos negros observa os músicos. Mudam o ângulo, conversam entre si. Do fundo do fosso, surge um personagem que traz dados que ao serem lançados no palco disparam o início da ópera. Esses dados serão o elemento trágico, que inocentemente irão provocar o restante das ações da peça. Vemos então um grupo apostando na sorte, outro bebendo, outras rezando. Um panorama de uma comunidade em relativo equilíbrio. Até o momento que chega Crown, espécie de líder de gangue, que ao ter uma desavença no jogo acaba assassinando um homem e é obrigado a fugir, deixando para trás Bess, sua namorada mal falada pelas vizinhas crentes que cantam que “a mulher é imprevisível”. Desabrigada, Bess recorre à Porgy, um mendigo excluído da comunidade mas visto como homem caridoso. A peça então nos mostra como Bess muda seus hábitos, se tornando de “mulher à dama”, como diz uma das músicas. Até o dia em que Crown volta, abusa de Bess, que em choque volta à consumir cocaína e foge com seu traficante, Sporting Life, para Nova York. Nesse meio tempo, Porgy mata Crown e é preso. Depois de cumprir sua pena, volta para casa esperando que Bess estivesse lá, mas então descobre por meio das vizinhas que ela fugiu. Apoteoticamente, Porgy canta que irá atrás dela.

Assim termina a ópera escrita por George Gershwin, em 1935 nos Estados Unidos, cuja relevância está no protagonismo negro, tanto na narrativa quanto nas composições musicais. Todavia, quando analisamos a narrativa em si, logo percebemos que ela está embebida no racismo e no machismo de um escritor branco norte-americano. Baseada no modelo melodramático, a peça se estrutura na disputa entre bem (Porgy) e o mal (Crown) pelo objeto de desejo (Bess). A mulher é vista aqui passivamente, de maneira que suas decisões e modos de agir estão condicionados aos parceiros que ela estabelece. Opinião ratificada pelo coro, que representa uma comunidade evangélica extremamente conservadora. Esse jogo de oposições absolutas também produz efeitos politicamente catastróficos, na medida em que o público aplaude quando Porgy mata Crown. Isso é enfatizado ainda pela música, coreografia e cenário que estetizam cenas violentas, deslocando-as da realidade a tal ponto que causam prazer ao invés de incômodo crítico. Efeito que se repete quando Crown estupra Bess enquanto cantam um dueto que é ovacionado.

O repertório operístico está recheado de libretos assim, o Guarany, Don Juan e outras tantas histórias que representam uma visão conservadora do mundo. Contudo, é com esse material - ou contra ele - que as/os encenadoras/es contemporâneas precisam lidar. A escolha de Grace foi de deslocar o contexto. Dos Estados Unidos dos anos 30 para o Brasil atual. Por meio das visualidades e da inclusão do vogue e do street dance, a encenação realiza esse transporte espaço-temporal. Contudo, esse deslocamento ao invés de tensionar o material racista e machista da ópera original, apenas o ratifica. Os estereótipos seguem operando, só que agora mais próximos ainda, sem o distanciamento de tempo e espaço que permitiriam uma mirada crítica para eles. Não é difícil de imaginar que ao sair do teatro em sua mercedes, um empresário comentasse para sua esposa “Ah, então é assim na favela”, sem se dar conta de que na verdade toda aquela história havia sido escrita por um branco estadunidense do século passado. Sem lançar mão de procedimentos que questionassem a própria ópera, a encenação acaba gerando comentários como “a música é impressionante”, “o cenário estava lindo”, mas nenhuma reflexão real sobre as problemáticas sociais existentes no enredo e na própria construção do espetáculo.

Talvez esse apaziguamento dos conflitos pela chave estetizante seja resultado das pressões internas e externas do Muncipal, de maneira que a possibilidade crítica do espetáculo ficou reduzida a um elemento muito sutil perto da espetacularização proposta pela linguagem operística: o olhar. Em quatro momentos, Grace Passô insere ações que estão fora da situação representada em cena de maneira a provocar um leve distanciamento do melodrama representado. O primeiro é logo no início, quando o coro observa a orquestra, como que dizendo “Não esqueçam que existem pessoas tocando essa música”. Esse gesto inaugural se radicaliza quando racializamos a cena: um coro negro observa uma orquestra regida por um maestro branco, em um teatro desenhado pelas elites paulistanas. O segundo momento é quando, durante um entreato instrumental, uma criança negra observa com binóculo a plateia, invertendo as posições de quem é vigiado. O terceiro ocorre logo após a ovação do dueto em que Crown violenta Bess, no qual o rosto de uma mulher é projetado, ocupando toda boca de cena. Seus olhos assustados encaram a plateia, numa tentativa de dimensionar o horror da cena anterior, mas que acaba sendo suavizado pela música e por efeitos de nebulosa no vídeo. E o último ocorre no dueto romântico de Porgy e Bess, que é filmado com celular e projetado por um dos bailarinos do coro, gerando um estranhamento na cena que seria profundamente melosa.

Por mais que esses procedimentos nos distanciem da ação dramática da peça e da hipnose provocada pela música, eles são pontuais e sutis diante do conservadorismo do libreto. Essa inversão da olhadela parece ter sido a crítica possível diante da pesada maquinaria operística, na qual o libreto é imutável, o tempo é marcado pela partitura e a encenação de uma forma ou outra precisa atender às expectativas do público assinante da casa. Assim, o “olhar” torna-se a fissura por onde se infiltra uma crítica que não chega a romper a estrutura, mas a contamina. Em vez de reescrever a história ou confrontar frontalmente o racismo e o machismo do libreto, Passô aposta em pequenos deslocamentos que expõem a relação entre quem assiste e quem é olhado, entre palco e plateia, entre a comunidade negra em cena e o público majoritariamente branco que a observa. Esse gesto não redime a ópera de suas violências, tampouco resolve a tensão entre arte e poder. Ao devolver o olhar, a encenação recorda que não há neutralidade possível: cada aplauso, cada silêncio, cada desvio de atenção participa do jogo político que sustenta a permanência – ou a transformação – desse repertório.

 
 
 

Comentários


SOBRE

CONTATO

Um espaço de experimentação da crítica teatral.
2 pontos de vista por 2 universitários.

E-Mail: capivaracritica020@gmail.com
@barbaracunhaf

@danni_vianna_

© 2025 por Capivara Crítica

 Orgulhosamente criado com Wix.com

  • Instagram
bottom of page