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EU NÃO GOSTARIA DE SER LEMBRADO COMO O CAMPEÃO GAY DE BOXE - sobre “12º Round: a história de Emile Griffith, do Coletivo Nocaute

  • Foto do escritor: capivara crítica
    capivara crítica
  • 6 de jul.
  • 4 min de leitura
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Como recuperar uma história perdida em notícias de jornais e em transmissões ao vivo dos anos 60? Como compreender essa realidade e trazê-la para o presente, para que nesse movimento possamos ver aquilo que é transformação e permanência na luta da história? E como resistir a transpor categorias do agora para um tempo em que elas existiam de outra forma? É esse o embate que “12º Round” trava ao contar a história de Emile Griffith, 5 vezes campeão mundial de boxe e primeiro boxeador a assumir publicamente sua bissexualidade, desfilando na parada do Orgulho de Nova York. Contudo, assim como em uma luta, devemos identificar as estratégias utilizadas e tentar analisar seus efeitos e consequências.

Ao entrar no teatro, os atores e atrizes estão treinando boxe, desferindo golpes precisos, tensionando os músculos e em seguida relaxando para secar o suor. Essa dimensão corporal será um dos eixos da encenação de Bruno Lourenço, que explicita o caráter material da luta: o corpo deslogando pesos e transferindo energia. Por mais que sobre um palco, essas ações não são representadas, mas sim realizadas concretamente. Um golpe desferido é um golpe desferido. Da mesma forma que um beijo é um beijo. Esse jogo entre a violência e o carinho sintetiza o conflito vivido pelo personagem, em embate constante com as pressões sociais da masculinidade, que aceita e o condecora quando ele mata um homem no ringue, mas o condena e prende quando ele ama um homem na sua casa.

Todavia, esse caráter performativo das agressões e dos afetos tensiona a outra esfera do espetáculo: a busca por uma representação mimética dos espaços e personagens. De um lado temos os armários e bancos de um vestiário, ao centro o ring da luta, e do outro lado uma poltrona com um fundo cortinado, sugerindo o apartamento do boxeador. Essa disposição espacial representa no plano político como os afetos podem emergir nas esferas públicas e privadas. Os socos no ring diante de todos, os beijos apressados no vestiário e as conversas sinceras no quarto. Por meio do espaço, compreendemos aquilo que pode emergir e aquilo que deve ser ocultado, como enfatiza uma das personagens que nos conta sobre as leis homofóbicas estadunidenses, que proibiam até a publicação da palavra gay em jornais. Dessa maneira, para que Emile viesse a público, foi necessário uma sessão de fotos com uma noiva falsa, que “atestasse” a heterosexualidade dele. Os flashes das fotos, evidenciam em cena, a representação e o desconforto.

Assim, “12º Round” nos mostra as regras implícitas e explícitas que regiam - e regem - as nossas sensibilidades. Contextualizada nos Estados Unidos dos anos 60, a peça traduz a máxima do movimento feminista da época, de que o pessoal é político. Sistematizado pela teórica Carol Hanisch, essa percepção surgiu justamente da prática de grupos feministas que passaram a se reunir para debater questões como: “o que você prefere/ria, um bebê menina ou menino, ou nenhuma criança, e por quê? O que acontece com o seu relacionamento se o seu companheiro ganha mais dinheiro do que você? E se ele ganha menos?”. Vistas pelo senso comum como perguntas terapêuticas, o movimento feminista radical inverteu essa lógica ao coletivizar a discussão, revelando que as relações íntimas em verdade são profundamente políticas, na medida em que compartilham experiências comuns.

Caminhando nessa direção, a peça busca ampliar as experiências pessoais das personagens na medida em que as tornam públicas para os espectadores. Para isso, a dramaturgia está estruturada em 12 cenas de 3 minutos cada - como numa luta de boxe - nas quais distintos personagens realizam monólogos internos ou dão depoimentos. Essa estrutura, exige da atuação uma fusão entre ator-personagem, na medida em que se almeja não apenas acompanhar a história narrada, mas também acessar os sentimentos internos das figuras. Buscando desenvolver mais radicalmente esse procedimento atoral, a direção escolhe que o ator que faz Emile permaneça assim ao longo da peça, enquanto os demais atores e atrizes revesam os outros personagens, ora fazendo a mãe, o namorado, o repórter, a noiva etc. Desenha-se assim, a saga de um herói que acompanhamos desde seu surgimento até sua decadência, através de diferentes pontos de vista, permitindo que identifiquemos os distintos recortes sociais que atravessam sua trajetória. A expectativa desse procedimento é que, ao ouvir a história da personagem, ou o público se reconheça e perceba que na verdade sua própria história pessoal é compartilhada por outras pessoas; ou que não se reconhecendo consiga empatizar com a diferença.

Contudo, essa escolha pela estrutura de monólogos — apesar de oferecer um mergulho sensível nas subjetividades das personagens — acaba por individualizar aquilo que é estrutural, transformando conflitos sociais complexos em dilemas internos e pessoais. Ao tentar politizar o pessoal, corre-se o risco de restringir a politicidade ao campo do reconhecimento de identidades, sem necessariamente colocar em cena as relações, contradições e disputas entre os agentes sociais que compõem esse tecido. Assim, ao recuperar a história de Emile Griffith, a peça pode inadvertidamente realizar aquilo mesmo que ele não gostaria: ser lembrado apenas como o "campeão gay de boxe". Fica, portanto, a provocação: como contar a história de uma vida marcada pela opressão sem reduzi-la a um rótulo, e sem esquecer que o verdadeiro combate nunca foi apenas sobre quem Emile era, mas sobre o mundo que o obrigou a lutar para existir?

 
 
 

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