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NATURA EX MACHINA - sobre “Macuco”, de Victor Nóvoa

  • Foto do escritor: capivara crítica
    capivara crítica
  • 18 de jul.
  • 5 min de leitura
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Antes de começar as coisas já começaram. Entramos no auditório, que está tomado por um azul suave. No palco, uma estrutura com tecidos gira permanentemente. Enquanto aguardamos o começo, observamos. E nos damos conta, que essa estrutura sintetiza muitas coisas do que vamos ver. Uma vela de barco, que gira em falso sobre um motor. Um Brasil em contato e diálogo com a natureza, um Brasil que cozinha casas com bambus cortados na lua crescente e amarrados com encantarias. Mas também o outro Brasil, o dos motores movidos por gasolinas, queimadas e concretos; motores que giram em falso e não nos levam a lugar nenhum. Essa junção entre o barco e o motor revelam a tensão presente na peça entre dois projetos de país, que nesse conflito aparece ao público como um fantasma que rodopia e nos assombra.

É a partir desse jogo de duas faces, dois tempos, dois personagens que a peça desenrola a história de Sebastião e Bernardo, homens com trajetórias opostas e que se encontram em um território em disputa. O primeiro é poeta, nasceu e cresceu em uma ilha no litoral paulistano, filho de um pescador e de uma cozinheira, ambos líderes da comunidade local que vem enfrentando ameaças da construtora de uma ponte que pretende conectar seu território ao continente. O outro é um jornalista e professor, que perseguido pela ditadura, se refugia na ilha, onde passa a alfabetizar os moradores e escrever reportagens sobre as violências que a comunidade vem sofrendo. Sebastião ensina Bernardo sobre os segredos da ilha, e Bernardo os segredos da escrita. 

Se antes, esse dois personagens apareciam separados pela vela do barco, agora passam a compartilhar a mesma parte do palco, compartilhando também seus sonhos. Desse encontro surge o amor que será duplamente perseguido, tanto pelas tradições heteronormativas quanto pela empresa, que vê nesse junção uma perigosa articulação entre militantes e líderes locais. Como resultado, Bernardo é morto e Tião se vê obrigado a refugiar-se na cidade grande, realizando o caminho inverso do seu amado que veio se refugiar na ilha. 

Lá, na capital, de poeta, Sebastião, se torna entregador de comida. Em cena vemos ele elencar todo tipo de produto que leva em sua mochila amarela, dos mais baratos aos mais caros, todos inacessíveis. Vemos aí a promessa maldita do desenvolvimento: dizem que teremos mais tempo e mais conforto, mas temos que trabalhar 16 horas por dia e não temos mais tempo para escrever poesia. Ainda assim, Sebastião encontra respiros poéticos na rotina que busca dessensibilizá-lo. Ele coloca a cabeça na caixa de entregas e escuta Fafá de Belém.

E num desses momentos ele vê um macuco, ave típica de sua ilha, ameaçada de extinção. Representado por uma rede desfiada, o Macuco se torna o personagem narrador da peça, entremeando tempos e espaços, contando em vai e vem a história. É ele que instiga Sebastião a voltar para a ilha de onde partiu e rever sua mãe.  É ele quem nos contextualiza sobre o passado das personagens e do território. É por meio dele que conhecemos Cleide do Ilhote, mãe de Sebastião, conhecedora dos segredos da cozinha e da construção de casas - segredos compartilhados com o público, que no programa de sala, recebe a receita do Azul Marinho, prato típico caiçara. Ela é a última moradora da comunidade de pescadores. Apesar das ameaças e de terem queimado sua casa inúmeras vezes, ela se recusa a vender a propriedade. Sua vingança é permanecer. O Macuco também nos apresenta Mestre Enchó, antigo artesão de canoas, mas que agora com a invasão dos turistas vende algodão doce fantasiado de super-herói - fantasias que ele tem que pagar aos donos da fábrica e algodão doce - e trabalha como piscineiro de uma casa de ricaços, onde antes havia sido a sua própria casa. 

Esses dois personagens mostram a Sebastião o horror do desenvolvimento. Para aqueles que ficam no território em disputa restam duas opções: estar condenado à resistência diária, ameaçada constantemente, mas defendendo seus direitos; ou estar condenado à exploração brutal, na qual seus saberes ancestrais não tem valia, da mesma forma que sua vinculação com a terra não lhe garante a propriedade. Diante disso, Sebastião retorna para sua casa. Mas no lugar encontra sua mãe com suas poesias e a casa em chamas. Então, o Macuco começa a narrar a grande tempestade que se arma. Ela apaga o fogo da casa. Desliza os barrancos onde moram turistas e paralisa as grandes obras do desenvolvimento.

Assim se encerra a grande saga de Sebastião, que também é a história de um país. O espetáculo Macuco tem a capacidade de articular em uma única narrativa os distintos componentes da nossa tragédia. Vemos o quanto os projetos desenvolvimentistas da ditadura desembocaram na invasão predatória de turistas no litoral e a consequente expulsão e marginalização dos moradores originários desses locais. Vemos,  encarnada em Sebastião, a uberização do trabalho nas grandes capitais, que pouco tem de diferente no trabalho análogo à escravidão, representada pela situação de mestre Enchó, ambos personagens artistas destituidos de sua arte pela máquina do capitalismo. Vemos também as resistências, nos pescadores organizados, em Cleide do Ilhote que desafia as grandes empresas, em Bernardo que mantinha vivo o sonho da Educação Popular. 

Contudo, apesar de reconhecer os problemas sociais, a peça tem dificuldade de encontrar uma solução social para os problemas. Parece que as aulas de Bernardo, a organização dos pescadores,  as denúncias na imprensa não são suficientes para conter a fúria desenvolvimentista. Diante disso, apela à natureza como solucionadora de problemas que ela não criou. Se nas tragédias clássicas, nas quais deuses apareciam no final para resolver o caos, aqui as forças naturais cumprem essa função. Mas há uma diferença: a causa dos problemas de Édipo, Antígona e Medeia não está na ação humana, mas sim no destino, portanto faz sentido que somente entidades não humanas possam resolvê-los; já a tragédia de Macuco não tem outra causa se não a ação humana, de maneira que somente humanos podem resolvê-la. Além disso, na peça a tempestade destrói as casas ricas, mas bem sabemos que na realidade as catástrofes climáticas atingem principalmente as comunidades tradicionais e as periferias. A tragédia de São Sebastião, em janeiro de 2024, evidenciou isso. Dessa maneira, apesar de realizar uma denúncia afiada das estruturas que perpetuam a devastação no nosso país, a peça encontra um anúncio de uma solução que está descolada dessa mesma realidade que o espetáculo denunciou. Assim, Macuco se torna um sintoma do seu tempo, no qual é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, no qual é mais fácil imaginar uma revolta da natureza do que uma revolução humana.


 
 
 

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