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PEDRA LANÇADA - a partir de “A Boca que tudo come tem fome (do cárcere às ruas)” da Cia. de Teatro de Heliópolis

  • Foto do escritor: capivara crítica
    capivara crítica
  • 21 de jul.
  • 5 min de leitura
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Qual é o tempo de uma pesquisa continuada? O pensamento acadêmico tradicional enxerga a investigação como uma linha progressiva, na qual o presente supera o passado em direção à um futuro promissor onde todos os mistérios seriam desvendados. Mas a experiência concreta e cotidiana revela o oposto: quanto mais pesquisamos verdadeiramente mais somos capazes de enxergar as descobertas que fizemos antes e que, ao invés de nos trazerem respostas, nos colocam em meio a uma série de perguntas. Assim nos ensina o provérbio iorubano que diz “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje". Transposto para o teatro de grupo - no qual a continuidade da equipe garante um acúmulo de saberes coletivos -  esse pensamento revela que a peça de hoje elucida pontos das anteriores, ao mesmo tempo que as anteriores garantem a existência do espetáculo presente. 

Podemos analisar a trajetória da Cia de Teatro de Heliópolis a partir dessa perspectiva, na medida em  que desde de 2000 com “A queda para o Alto” investiga o encarceramento no Brasil. A pesquisa se aprofunda a partir de 2017 com o espetáculo “Sutil Violento”, que analisa as violências cotidianas da sociedade brasileira que se desdobram no seu julgamento muitas vezes injusto, presente na peça “(IN)JUSTIÇA” de 2019. Assim, como uma reação em cadeia, a Heliópolis se viu impelida a analisar justamente o destino daqueles que foram injustiçados pelo sistema judiciário, o que resultou no espetáculo “Cárcere ou porque as mulheres virão búfalos” de 2022. Em 2023, a companhia se dedicou a uma análise histórica das causas da violência no Brasil, resultando no espetáculo “Quando o discurso autoriza a barbárie”. Por fim, esse processo deságua em “A boca que tudo come tem fome (do cárcere às ruas)” que debate justamente o final desse processo de encarceramento, no qual vemos distintos personagens lutando para existir depois da emissão do alvará de soltura. 

Mesmo que independentes umas das outras, a comparação dessas cinco peças nos ajuda a entender a relação entre o problema social que a Heliópolis pretende dar conta e a forma pela qual essas/es artistas buscaram concretizá-lo e criticá-lo em cena. Nesse sentido, é possível identificar dois campos de organização no trabalho da companhia: o primeiro chamarei de perspectiva panorâmica, na qual se enquadram tanto “Sutil Violento” quanto “Quando o discurso autoriza a barbárie”; o segundo chamarei de perspectiva narrativa, na qual se enquadram “(IN)JUSTIÇA” e “Cárcere”. Por fim, argumentarei que “A boca que tudo come tem fome” é a articulação desses dois campos. Obviamente, essa esquematização busca simplificar as peças as suas características estruturais, uma vez que em todas as cinco peças existem elementos panorâmicos e narrativos. A esquematização tem como objetivo analisar justamente o que a estrutura cênica escolhida pelo grupo nos conta sobre o problema social representado. 

Chamo de panorâmico o primeiro campo na medida em que a peça se estrutura a partir de uma sequência de quadros cuja organização não está justificada por uma lógica causal entre personagens e ações, mas sim por uma justaposição de cenas de contextos distintos. É justamente a partir dessa aproximação de diferenças que conseguimos compreender como uma coisa está articulada à outra. Assim, “Sutil Violento” revela como as pequenas violências cotidianas podem desembocar no fascismo generalizado e “Quando o discurso articula a barbárie” associa a colonização à ditadura, por exemplo. Temos assim, uma visão ampla do problema social, que no caso das peças citadas também é amplo e difuso: a violência. 

Já a perspectiva narrativa busca revelar como na vida de determinados personagens as estruturas sociais operam. Em “(IN)JUSTIÇA” vemos como distintos agentes do sistema judiciário produzem a condenação do menino Cerol. Já em “Cárcere”, vemos duas irmãs Maria das Graças e Maria das Dores que mudam sua vida a partir do momento em que o filho de uma delas é preso, a partir do qual temos acesso a distintos pontos de vista, desde o enfermeiro da prisão até a supostas vítima do crime. Por mais que a peça articule cenas de distintos personagens, todos estão relacionados a uma história central, por meio da qual vemos no microscópio como os sistemas de justiça e encarceramento operam. Diferente do problema enfrentado pelas duas outras peças, de caráter difuso e amplo, tanto a justiça quanto a prisão são questões institucionalizadas, cujas causas e funcionamentos podem ser mais facilmente descritos e concretizados em uma narrativa. 

Contudo, o que ocorre quando a problemática social está justamente entre a institucionalização e difusão por todos aspectos da vida? É aí que a “Boca que tudo come tem fome” se enquadra. O problema enfrentado pelos sobreviventes do cárcere está simultaneamente no desamparo institucional pela falta de documentos e políticas que garantam sua re-inserção social e o constante risco de reinstitucionalização seja pela desconfiança que se instaura seja pelas dívidas que são contraídas graças à pena de multa. Frente a isso, a Heliópolis produziu uma autofagia, congregando distintos elementos das peças anteriores. 

Por mais que aparentemente pareça reproduzir a estrutura de “(IN)JUSTIÇA” e “Cárcere”, na medida em que vemos distintos personagens articulados por meio de um orixá, na nova peça da Heliópolis temos dificuldade de encontrar um fio narrativo único a partir do qual podemos acompanhar uma trajetória que revele passo a passo as consequências do encarceramento. Em lugar disso, vemos um panorama de personagens que, através de depoimentos, revelam por comparação os possíveis cenários para aqueles/as que sobrevivem aos cárcere. É interessante perceber a influência da perspectiva historicizante de “Quando o discurso autoriza a barbárie” na escolha das personagens e no texto, que articula figuras do período da abolição ao presente, revelando as permanências entre o processo que garantiu a marginalização das pessoas negras mesmo após o fim da escravatura com o processo de libertação de sobreviventes do cárcere. O texto, baseado nos depoimentos, confere um tom mais subjetivo à análise do problema social, revelando os sentimentos daquelas/es que passaram por isso. A subjetividade também se faz presente no movimento das atrizes e atores. Se em “(IN)JUSTIÇA” e “Cárcere” víamos coreografias que representavam ações do cotidiano dos sistemas - como por exemplo a revista íntima - aqui os movimentos ganham uma abstração que busca exprimir as sensações das personagens. 

Nesse contexto, “A boca que tudo come tem fome (do cárcere às ruas)” aparece como a pedra lançada que, ao atingir o presente, faz reverberar tudo o que a Cia. de Teatro de Heliópolis vem construindo há mais de vinte anos. A pesquisa continuada do grupo não avança por superação, mas por reconfiguração. Em cada espetáculo, os saberes acumulados não se encerram, mas se deslocam, retornam de forma renovada, lançam novas perguntas. A escolha por uma estrutura que articula a fragmentação panorâmica e a costura narrativa não é apenas formal — ela deriva diretamente da complexidade do problema social tratado. Ao trabalhar com a vida dos egressos do cárcere, a companhia confronta um terreno em que o abandono institucional e a violência difusa se entrelaçam, exigindo uma linguagem que dê conta da sobreposição entre estrutura e experiência, entre o visível e o sensível.


 
 
 

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