TUDO QUE É SÓLIDO SE DESMANCHA NO AR - sobre “FELIZARDA”, direção de Beatriz Barros
- capivara crítica
- 22 de jun.
- 3 min de leitura

Como representar o trabalho? Essa questão assombrou o teatro paulistano durante a década de sessenta, solidificando-se em grupos como o Arena que buscou aproximar a cena da realidade dos operários brasileiros. “Eles não usam black-tie” - peça tida como a primeira a colocar um operário como personagem principal - tentou, a seu tempo, dar conta tanto das opressões vividas por camponeses e trabalhadores urbanos quanto das suas lutas e greves. Para isso, mesclaram dispositivos do teatro politizado alemão com dinâmicas cênicas populares brasileiras, criando assim formas cênicas e dinâmicas de produção teatral que ecoam até hoje.
Contudo, essas soluções não parecem surtir tanto efeito para criticar a exploração contemporânea. Como representar algo que - como Marx e Engels já prenunciavam no séc. XIX - se esvai no ar? Por mais que sigam existindo fábricas, sindicatos e greves, o perfil do trabalhador mudou. Não caberia mais afirmar que não usam black-tie, porque justamente existe uma massa de trabalhadores de escritório. Nesse sentido, o personagem do operário másculo com roupas simples, vocabulário particular e aguerrido na luta - que na década de 60 aparecia como símbolo de toda classe trabalhadora - não parece mais representar a todos. Se na época essa representação já excluía uma parte da população, hoje em dia ela deixa de lado todas/os aquelas/es que se enquadram numa lógica empresarial de seja você seu chefe. FELIZARDA atua justamente nessa lacuna representacional.
Em cena vemos uma mulher trajando roupas finas que vai para uma entrevista de emprego. As luzes do palco escaneiam seu corpo como um produto. Os focos enquadram os rostos, como se fizessem reconhecimento facial. Usando frases genéricas e sempre sorrindo, ela consegue a vaga - ou melhor, a oportunidade -. No primeiro dia na empresa - ou melhor, na ESPÉCIE - é apresentada aos outros trabalhadores - ou melhor, colaboradores, como a aparente gerente de RH insiste em corrigir. Contudo, já situada na sua mesa, ela, a felizarda que conseguiu o emprego, não sabe o que tem que fazer. Tão pouco sabe qual é o ramo da empresa. E justamente aí reside o conflito que move a ação do espetáculo: a busca desenfreada pelo sentido do seu trabalho - ou melhor, colaboração.
Esse jogo de substituição de palavras também se faz presente na esfera afetiva da personagem principal. Sua esposa sofre de uma síndrome rara: ela troca palavras que têm sonoridades parecidas mas que possuem significados completamente opostos. Esse espelhamento - em que vaga vira oportunidade e vencer vira vender - é o diagnóstico preciso das dinâmicas do capitalismo contemporâneo, que para lucrar embaralha o sentido das coisas até se esvaziarem completamente, tornando-se produtos de fácil manipulação.
É justamente essa a conclusão que as personagens chegam ao final da peça - inclusive a pretensa gerente de RH que também não sabia exatamente qual era sua função na ESPÉCIE. Concluem que o produto é a própria palavra que, deformada, pode alterar a forma das pessoas se relacionarem, de se verem a si mesmas. Contudo, se nos anos 60 a conscientização aparecia em cena como a chave da transformação social, aqui ela não parece surtir o mesmo efeito. A peça encerra justamente no momento da tomada de consciência, afinal todos já haviam compreendido a dinâmica da ESPÉCIE desde o começo, inclusive as personagens. E aí está o nó do capitalismo contemporâneo: ele não se mascara, todos sabemos que quando dizem empreendedor querem dizer trabalhador, que quando dizem colaboração querem dizer exploração. Nesse sentido, se FELIZARDA traz para a cena dinâmicas do capitalismo contemporâneo que até então apareciam timidamente nos palcos, nos resta perguntar como imaginar a representação das revoltas contemporâneas em cena.
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