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UMA CENA DE VIOLÊNCIA É VIOLENTA(?) - sobre “Pai contra Mãe ou você está me ouvindo?” do Coletivo Negro

  • Foto do escritor: capivara crítica
    capivara crítica
  • 30 de abr.
  • 6 min de leitura


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Uma peça começa muito antes de seu início. Especialmente quando ela mobiliza a arena pública, provocando discussões que extravasam o âmbito da sala de espetáculos, ocupando corredores, salas de aula, bares etc. Assim, a experiência teatral se expande para o cotidiano, voltando por meio de ondas de memória, convocadas pelas interações sociais. Quando uma obra realmente movimenta questões sensíveis da sociedade, ela retorna, se tornando um objeto de disputa, por meio da qual espectadores dividem opiniões e pontos de vista. Dessa maneira, o teatro explicita as tensões sociais, provocando o diálogo de opostos e a possibilidade do dissenso.


E exatamente isso ocorre com o “Pai contra mãe” do Coletivo Negro, que atualiza as cenas trazidas por Machado de Assis em sua crônica publicada em 1906. Antes mesmo de decidir ver a obra, eu já estava envolvido por sua discussão no momento em que distintos colegas do Departamento de Artes Cênicas da USP passaram a trazê-la para debate em distintos contextos. O centro mobilizador das conversas era o conceito de fetichização da violência, a partir do qual meus colegas argumentavam que a obra ao elaborar poeticamente as opressões racistas vividas pela população negra brasileira re-encenavam a própria violência. Assim, segundo essa argumentação, a obra apenas repetia aquilo que meus colegas viviam cotidianamente nos mercados, ruas, shoppings da cidade de São Paulo. Essa repetição geraria uma re-traumatização, na medida em que uma pessoa que viveu a violência racial ao vê-la em cena passaria a vivê-la novamente. Dessa forma, a peça estaria dirigida ao público branco, frequentador majoritário do Sesc Consolação, que desconhece a realidade da violência racial brasileira.


Foi com esse contexto e esse horizonte que fui assistir a peça. E esse texto será um exercício que parte dessa argumentação para elaborar um pensamento ao mesmo tempo com e contra a perspectiva que condena a representação da violência, reconhecendo a existência de um fenômeno geral de fetichização da violência, mas discordando da sua aplicabilidade nessa obra específica. Para isso, primeiro vou descrever aquilo que minha memória conseguiu guardar do espetáculo para então averiguar os dispositivos usados em cena e seus efeitos na plateia. Também farão parte dessa análise as intenções dos artistas envolvidos na obra, explicitados no programa de sala. Comecemos.


O material que dispara a obra narra em 1906 uma história vivida anos antes, na qual um homem branco - tão branco que se chamava Cândido Neves - se vê em uma situação limite, na qual o empobrecimento e a pressão das dívidas o levam a entregar seu filho recém-nascido na roda dos enjeitados - dispositivo criado pela Igreja Católica para receber anonimamente crianças cujas famílias não quiseram ou não puderam criar. Contudo, como bem lembra o narrador, a escravidão produzia uma estrutura social na qual ferramentas e oficios que atentavam contra a humanidade se tornavam comuns, ordinários, invisíveis. Assim, Candinho, diante do desespero da pobreza e da promessa de uma recompensa caso encontrasse uma pessoa escravizada foragida, captura uma mulher negra que julgou ser idêntica à que havia visto em um cartaz. Arminda, nome escrito e publicado nos cartazes da cidade, estava grávida, e por conta das agressões sofridas, aborta diante de seu captor. Ele consegue o dinheiro e com isso permanece com seu filho, concluindo que “nem todas crianças vingam”. 


Reconhecendo as permanências dessa cena, o Coletivo Negro se pergunta: “Quais suas ressignificações no presente, suas permanências e consequências para a perpetuação do racismo e das desigualdades sociais que vivenciamos?”. Para responder a pergunta, atualizam a narrativa machadiana, deslocando-a no tempo, no qual Zaira e Osvaldo - bisnetos de Arminda e Cândido - se encontram em um supermercado. Ela, mulher negra, realiza uma pesquisa de preços para a festa de aniversário da mãe e de noivado com seu amor. Ele, homem negro, está no seu primeiro dia de trabalho como segurança privado, após ter trabalhado como pedreiro e entregador de aplicativo para pagar as dívidas do agiota. Julga reconhecer em Zaira uma possível suspeita de roubo. Querendo impressionar os chefes, a leva para uma sala escondida e a tortura, provocando um aborto. Ela não fez a festa que tanto queria e nunca mais sorriu. Ele foi linchado pela população e demitido pela empresa, que seguiu lucrando com seus produtos.


Ambas narrativas evidenciam as origens econômicas do racismo, uma vez que a pobreza é o elemento central que leva tanto Cândido quanto Osvaldo a violentarem Arminda e Zaira. Assim, Machado e o Coletivo Negro evidenciam como as estruturas da sociabilidade brasileira fazem com que o conflito racial se desenhe a partir da oposição entre a figura do branco rico e do negro pobre, mas que se concretiza pela disputa entre negros e branco pobres. Assim, o personagem branco rico aparece nas narrativas de forma periférica, mesmo sendo o principal disparador do conflito. É ele que cria as condições da violência, contudo distante em seus escritórios e carros blindados, não suja suas mãos com o sangue, de maneira que dificilmente se vê implicado judicialmente nas ações que ele mesmo orquestrou. 


Dessa maneira, tanto os donos dos supermercados quanto os senhores do passado seguem lucrando. “Quem se beneficia, em todas as instâncias, são os donos, para nós sobram os danos” como conclui o Coletivo Negro. Candinho e Osvaldo se vêem colocados na posição simultânea de vitimários e vitimados, pressionados pela estrutura a sustentar o sistema que também os oprime. Contudo, inconscientes disso, assumem o discurso do opressor: Cândido conclui que a escravidão é algo natural e Osvaldo encontra abrigo na Igreja, acreditando que a desigualdade é um desígnio divino. Síntese máxima dessa perspectiva é o individualismo extremado assumido por Osvaldo em sua canção: “A realidade tem suas / obrigações / Anote o que vou te contar / Se manter vivo é a mais / essencial / custe o que custar”.


Todavia, diferente de um conto, o teatro não se realiza apenas através da história que ele pode contar, mas principalmente das maneiras que ele conta essa história. Assim que entramos na sala, as ferramentas para criação da cena estão à mostra, vemos a banda, os refletores. Vemos a arruda e o sal grosso diante do palco, demarcando um território e explicitando uma posição. Vemos também um saco plástico e duas estruturas metálicas que ajudarão a criar um vagão de metrô, gôndolas de supermercado e uma sala de tortura. Esses elementos mais do que representar, irão sugerir territórios sociais específicos e simbolizar zonas de conflito, em que a movimentação das pessoas, a compra de mercadorias e o exercício da força serão colocados em questão. A conflitividade é enfatizada pela iluminação, pautada pela lateralidade, criando focos com diagonais contrastantes. Os personagens são vistos como se estivessem em uma linha de força, em que campos opostos os pressionam e puxam. Como pano de fundo dessa cena de contrastes, vemos as personagens filmadas em situações cotidianas, em que quadrados brancos seguem seus rostos. Essas projeções fazem ver, no reconhecimento facial propagandeado pelo prefeito e governador como estratégia de segurança pública, a perpetuação do olhar racista que levou Candinho a violentar Arminda. 


Esse espelhamento temporal é orquestrado pelo narrador, que comenta, critica e revela partes ocultas da cena. Usando uma jaqueta preta com o rosto de Machado, ele assume a típica característica do narrador machadiano, jogando todo o tempo com o leitor/espectador de forma irônica e conflitiva. Essa articulação cênica ganha relevo justamente na cena de maior violência, na qual Zaira é espancada por Osvaldo e aborta. Contudo, o público não vê a cena, apenas ouve os gritos da personagem. O que vemos é o olhar questionador do narrador, que nos lança a responsabilidade diante do crime. Nos tornamos testemunhas. O olhar fixo do narrador em nós nos faz refletir sobre o nosso próprio olhar sobre a cena. “Vocês estão me ouvindo?” é a pergunta que coloca o público dentro do problema social da peça.


E esse dispositivo, no qual a cena se oculta e o público de observador se torna observado, somado aos elementos descritos anteriormente, fazem com que a violência não seja vista como algo exterior a nós, como algo que acontece simplesmente, como objeto. Ela é vista como resultado de ações concretas que determinados sujeitos realizam pressionados pelas condições sociais às quais estão submetidos. Portanto, a violência não é encenada para o prazer de um olhar espetacular, mas sim para a análise profunda de suas origens. A agressão é suspensa no tempo, para que possamos ver seu passo a passo e tentar identificar o ponto na qual poderia ter sido evitada. Só que para isso precisamos em algum grau também senti-la, compreendendo-a de maneira sentipensante. Nesse sentido toda cena de violência precisa ter uma face violenta que envolva o público, caso contrário enxergaríamos nela apenas uma banalidade cotidiana. Temendo repetir a violência, a cena acabaria por ignorá-la. Corajosamente, o Coletivo Negro parece reconhecer a necessidade de certa crueza, entendida não como explicitação gráfica dos gestos violentos, mas como exposição sincera dos seus resultados. 


Ao ocultar o espancamento de Zaira, o Coletivo Negro poupa o público de ver mais uma vez uma mulher negra sendo violentada, mas escancara a gravidade do problema no qual todos fazemos parte. A violência não está na representação dos gritos de Zaira, mas na análise aguda e rigorosa, que não poupa nenhum dos envolvidos. E por meio dessa análise violenta, podemos imaginar outro Brasil, em que nossos sonhos não minguam, ecoando a canção final da peça.


 
 
 

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