É MUITO EU - a partir do espetáculo “Ensaio sobre Nós”, da Cia. Entrenós
- capivara crítica
- 21 de set.
- 3 min de leitura

Enquanto o público entra, uma banda está se preparando. “Será que erramos de sala? Vai ser um show?”. Logo entra a cantora, consulta o público se ela está sendo escutada e então olha para a banda para começar. Só que ao invés de música, somos encharcados por uma torrente de palavras que traduzem o cotidiano atribulado de uma jovem artista. Por meio do microfone ouvimos o despertar, a preparação da casa, os vídeos de tiktok, as rotinas alto-astral, a yoga, a faculdade, o sucesso de atrizes mais jovens que ela e o feminicídio de adolescentes. Ela pergunta à plateia se conhecem o Caso Eloá e o Caso Vitória, que ela viu no TikTok. Essa quebra em direção ao público faz com que a problemática social então se confronta com a lógica individual que a peça vinha tomando, gerando uma ruptura no espetáculo explicitada pelo grito da atriz fora do microfone. A partir desse momento, ela começa a se relacionar com os instrumentos da banda, criando diferentes relações com cada um. Conversa com o baterista sobre a amizade. Com o trompetista, tem um diálogo em que ela tenta falar e ele a silencia com suas notas estridentes. Assim por diante, cada diálogo desdobrando as opressões que haviam sido apontadas no momento monológico anterior. Depois, em um momento de liberação, ela se lambuza em um bolo com chantilly, comendo-o com a mão e chupando os dedos, contrariando as restrições impostas pela mãe, a voz dos bons costumes. Por fim, ela retoma a postura do ínicio, como se tudo que tivéssemos visto fosse apenas o ensaio para o espetáculo que virá em seguida.
Durante a mediação pós-espetáculo, uma das espectadoras, respondendo à pergunta “Qual título você daria para a peça?”, disse: “É muito eu”. E depois explicou que se reconhecia plenamente na personagem central, se identificando no turbilhão da rotina cotidiana e no grito de desespero. “Quando ela gritou aí no palco, eu gritei junto com ela, mesmo estando em silêncio”. E outra espectadora disse “Eu sempre quis comer bolo assim, do jeito que ela comeu”.
Por um lado essas falas revelam a catarse que o espetáculo provocou, possibilitando a manifestação de sensações reprimidas na esfera pública. O teatro então se torna o espaço em que os interditos podem ganhar voz, construindo uma lógica distinta das regras cotidianas. A aposta dessa operação é que talvez o público, ao ver aquilo que é reprimido na sua vida sendo expurgado em cena, mude suas atitudes na realidade. Nessa direção, o “muito eu” indica uma ampliação da individualidade em direção a um coletivo que se identifica com a personagem, que passa a ser a representante não de uma pessoa mas de uma categoria social que compartilha traços comuns. O eu se torna um nós.
Por outro lado, a operação de identificação plena entre palco e plateia dificulta a percepção crítica tanto das atitudes da personagem quanto das nossas próprias ações na realidade. Dessa maneira, ao reconhecermos em nós a enxurrada vivida pela cantora, a sensação de sufocamento pelas mídias e a apatia diante dos problemas sociais, acabamos nos contentando com essa identificação. “Ufa, não sou só eu que vivo isso”. Assim, acabamos por positivar ações questionáveis como o desejo de sucesso por meio da inserção no mercado, e também universalizamos a personagem, ignorando sua inserção num contexto social. Positivamos o caráter questionador da cantora, mas esquecemos que seu cotidiano é muito específico dentro da realidade brasileira: uma artista de classe média do sul. Nesta chave, não é a personagem que representa uma coletividade, mas por um efeito de empatia teatral, a coletividade passa a ter a sensação de que pode ser representada em um indivíduo cuja realidade é muito distante da sua. “Muito eu” passa a significar um individualismo exacerbado.
Dessa maneira, “Ensaio sobre nós” atualiza a dinâmica contraditória provocada pelo efeito de identificação espectador-personagem. Contudo, a Cia. Entrenós não se utiliza dos procedimentos clássicos para gerar empatia. Não há o delineamento de uma situação em que personagens entram em conflito. Não há plenamente representação, a atriz e a personagem se misturam. Não há a definição de um espaço e tempo ficcional, o que vemos é concretamente aquilo que está em cena. E não há uma única ação que perpassa o espetáculo e que transforma a personagem, vemos quadros que vão se sucedendo, como as músicas de um álbum. Curiosamente, utilizando procedimentos do teatro pós-dramático, “Ensaio sobre nós” constrói no público uma nova dramática, pautada não mais na ficção, mas na identificação entre a exposição de sensações reais vividas pela atriz e a experiência do público.
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