TORNAR O LUTO VERBO - a partir de “Antígona Travesti”, de Renata Carvalho
- capivara crítica
- há 5 dias
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Atualizado: há 4 dias

Uma convocatória. Uma reunião secreta. Uma mensagem no Whatsapp codificada. Uma instrução precisa: não conte nada a ninguém. Uma roupa adequada: ir com tecidos pretos. Um cartaz. Uma caneta. Tudo isso ocorre antes do início do espetáculo, deslocando a noção usual de que basta adquirir o ingresso, sentar na poltrona e pronto. Desde a divulgação, Renata Carvalho modifica nossa posição enquanto espectadores de algo que ocorre à nossa revelia. Somos colocados dentro da situação ficcional da peça. Passamos a ser participantes de uma organização de travestis contra o assassinato de Polínice, uma de nossas companheiras.
Já com essas informações e sensações chegamos ao local combinado. Uma rua vazia, não se sabe muito bem onde é o teatro. O público não está diante do local esperando, conversando, fumando, como geralmente ocorre. Será que é aqui? Será que errei de local? Dúvidas podem te percorrer, te colocando ainda mais na situação de uma reunião secreta e arriscada. Então vemos uma mulher de preto, com óculos escuros. Ela se aproxima e pergunta: Você veio para a reunião? Ela tem lágrima nos olhos. Ela reconhece as roupas pretas e os materiais para cartazes, como um código. Então ela nos conta da morte da sua - da nossa - companheira Polinice, brutalmente assassinada. Indica o caminho que devemos seguir para nos reunirmos com nossas companheiras e com Antígona, nossa líder.
O uso do “nós” ganha um sentido coletivizante da situação, colocando mesmo pessoas cis da plateia como parte da mobilização. Ao entrar no espaço cênico esse gesto se concretiza, na medida em que o clima de luto está instaurado. Em um canto, velas e oferendas. Em outro, café, chá, biscoitos. O público está calado, sussurra as vezes. Aos poucos as atrizes vão chegando. Umas choram. Outras permanecem caladas, refletindo. Nós participamos desse estado e começamos a sentir a perda dessa mulher que nós não conhecemos. Nos sentimos como num velório de uma velha conhecida, uma amiga, uma irmã.
Depois que todas chegam, Antígona explica os motivos pelos quais ela nos convocou. Creonte, o pastor que governa o Brasil, instaurou um decreto que impede o enterro de pessoas trans em cemitérios, bem como revoga os nomes sociais e obriga que Polinice seja enterrada de terno e sem maquiagem. A partir desse momento se inicia uma intensa discussão entre as atrizes. O que será feito? Vamos nos mobilizar, ou iremos permanecer aqui? Uma delas argumenta que está exausta de lutar, de sempre ser a linha de frente. “Quando alguém vai lutar por nós?”. Ecoando a personagem de Ismênia, da tragédia grega, essas perguntas implicam diretamente a plateia, nos convocando a participar da luta. Assim, terminamos produzindo e erguendo cartazes contra Creonte, em marcha, lado a lado, em memória daquelas que foram mortas e em luta pela vida daquelas que seguem conosco.
A morte de Polinice, uma travesti ficcional, produz na plateia cis aquilo que a morte de milhares de travestis reais não produziu: a comoção e a mobilização. Ao realizar essa operação, Renata Carvalho revela a potência do teatro enquanto arte da representação, capaz de alterar os modos como nos afetamos. Ao colocar o público como companheiro de luta pela vida das pessoas trans, “Antígona Travesti” modifica a partilha do sensível. Por um instante, todos estão velando a vida de uma travesti assassinada, alterando a lógica de silenciamento operante na sociedade. Por um instante, todos estão em marcha lutando contra o trans-feminicídio, alterando a desmobilização generalizada. Dessa forma, o espetáculo politiza a empatia, tornando-a ferramenta de participação e não de espectação passiva. Resta saber, se, ao sairmos do teatro, quando confrontados com a morte real de uma travesti iremos para as ruas com cartazes em punho.
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